quarta-feira, 10 de maio de 2017

Parampara: uma reflexão sobre yoga e conhecimento.



"Parampara é o conhecimento passado em sucessão de professor para o aluno. É uma palavra em sânscrito que denota o princípio de transmissão do conhecimento na sua forma mais valorosa; conhecimento baseado em experiência direta e prática. É a base de qualquer linhagem: o professor e o aluno formam a conexão da cadeia de instrução que foi sendo passada durante milhões de anos. Em ordem dos ensinamentos de yoga serem efetivos, verdadeiros e completos, devem vir através de parampara." (KPJAYI, 2017, tradução minha)

Aprendi com ensinamentos de vedanta, a partir da professora Glória Ariera que o estado de yoga é um estado livre de qualquer limitação. Quando penso e principalmente na hora de escrever, de materializar um pensamento o meu maior exercício é fazê-lo de uma forma libertadora. O yoga me deu grandes ensinamentos para a minha vida acadêmica, onde a construção do conhecimento muitas vezes se limita por aparelhos burocráticos e por diversos motivos. Infelizmente, na produção do conhecimento e na própria prática do yoga isso também está presente, podemos ver de uma forma extrema gurus se colocando em posição de deus e decidindo a verdade pelos outros, ou em outras formas mais sutis de controle do conhecimento. O que sempre me atraiu no yoga foi um resquício de anarquia. Enfim, o que quero dizer com isso tudo é que as reflexões aqui presentes são abertas e livres, nada definitivas.

Apesar de todos sermos iguais, historicamente a humanidade não caminhou sempre para esse lado, o maior marco sem dúvida foi quando alguns Europeus, utilizando a imagem de Jesus Cristo como um mártir, sim, os próprios que o crucificaram, resolveram colonizar o mundo, demarcando territórios, explorando povos, em busca de poder e ouro. A colonização não foi só territorial, foi espiritual e epistemológica, ou seja, uma colonização do próprio conhecimento, até hoje é, a prova disso é que a ciência sempre decide por tudo, sempre é o ponto final. Na história do yoga isso não foi diferente. Com a chegada dos britânicos no que hoje conhecemos como Índia a troca de conhecimento não foi livre e desimpedida.

O que isso tem a ver com Parampara?

Dando um salto na história, vamos para o tempo em que alunos ocidentais começaram a chegar em Mysore para aprender yoga com o Sri Pattabhi Jois, o guru do método Ashtanga yoga. Eu li no livro de Mark Singleton um trecho de uma entrevista com um dos colegas de Pattabhi Jois, que agora me fugiu o nome, mas logo adiciono aqui, que antes dos alunos estrangeiros chegarem os seus ensinamentos não eram referidos como Ashtanga, mas sim apenas como "ásanas".

Sem dúvida a relação professor e aluno é a essência desses ensinamentos, pois a relação em si carrega ensinamentos. Aprender de um professor que diariamente estende seu tapete e faz uma prática de ásanas, que diariamente busca em si um momento de silêncio e sabedoria, que exercita diariamente estender seus aprendizados para sua vida e relações cotidianas, guarda sem dúvida um grande valor, pois afinal yoga é prática e como resultado disso a maior autoridade de um professor é sua própria experiência, a linhagem um guia. Isso foi o que mais me encantou quando cheguei ao Ashtanga yoga. Não tenho dúvidas que é uma forma ímpar e genuína de conhecer o mundo e de adentrar o mundo do yoga.

Porém, vendo o conhecimento como livre e ilimitado, não acredito que haja uma forma específica e que de forma imutável ele seja "transferido", ou "transmitido" de uma pessoa para outra pessoa como se a relação não contasse. Isso é uma coisa bem óbvia quando discutimos sobre educação, sobre como o conhecimento não é simplesmente passado do professor para o aluno de forma unidirecional, mas que aprender é uma relação de mão dupla, ou múltipla. No Ashtanga isso se tornou de certa forma uma confusão e ao mesmo tempo um grande tabu. É visível na história do método como ele se moldou ao público e aos alunos, como os próprios alunos foram parte de sua construção enquanto tal, e por oposição a esse diálogo e circularidade do conhecimento, um atual enrijecimento na prática, e aparentemente uma recentralização da autoridade. Acredito que essa suposta imutabilidade do conhecimento dentro linhagem e parampara toma forma na exatidão de como se faz uma postura, porque supostamente "tradicionalmente" ela foi feita assim. Minha experiência é com o Ashtanga, porém acredito que isso se estenda a outros métodos de prática.

Quais os conflitos que carregam isso e porquê acredito que eles não devem ser um tabu: Primeiramente se fizermos uma pesquisa histórica profunda podemos ver que a prática de ásanas não veio de um professor para aluno em uma linhagem ininterrupta, ao contrário disso a ciência e medicina ocidental, por exemplo, tiveram grande parte na forma que praticamos ásanas atualmente, mesmo dentro do tradicionalismo do Ashtanga... Isso não quer dizer que o yoga é mais ocidental do que indiano, como tendem a concluir alguns, ou tão ocidental quanto indiano, ou moderno em oposição a um yoga antigo que se perdeu, sendo os gurus ou os indianos em geral portadores desse conhecimento milenar. Tudo isso é uma confusão da epistemologia dita moderna, que criou dicotomias como natureza/cultura, moderno/tradicional (pretendo adentrar nesse assunto em um post específico).

Sem dúvida, se olharmos para os relatos de praticantes de Ashtanga e também pra história da prática de ásana dentro do Palácio de Mysore, veremos que o método foi constituído e o é através do tempo, em colaboração com alunos, sendo parampara, sem dúvida, uma relação essencial dentro desse ensinamento. Além disso, acredito que primordialmente yoga é uma pesquisa e questionamento sobre o que é ser humano, um conhecimento sobre a própria humanidade, que foi desenvolvido ao longo do tempo e que deve continuar sendo enquanto tal. Mas, e aí, se tudo é tão bonito assim e livre, porquê um enrijecimento do método?

Porque infelizmente para começar vivemos dentro de um sistema capitalista, que existe uma coisa que se chama propriedade intelectual. Ou seja, se o KPJAYI não se institucionaliza alguém fará isso por eles, como já fizeram inclusive, algo que eu realmente gostaria de saber mais, pois acho um absurdo. Um europeu fez seu próprio instituto de Ashtanga e ainda patenteou o nome. Se estou enganada, me ajudem a entender, mas pra mim isso é antiético e principalmente contra o yoga. O que parece um tabu entre os praticantes.

Enfim, se acontece isso hoje, imagina na época do colonialismo, hoje as violências são em níveis mentais, institucionais, burocráticos, antes também, mas também físicas, como massacres, guerras civis, invasão de território, entre outras coisas (pensando bem, hoje também). E o yoga também passou por essa história, tendo que se tornar uma "cultura", uma "tradição", que é resultado do formato Estado nação que passou a existir. Enfim, o diálogo e troca na produção de conhecimento sem dúvida existe, porém se imaginarmos ele como uma linha fluida e contínua, algumas pedras estão no caminho bloqueando essa passagem, momentos em que o conhecimento precisa se instituicionalizar , infelizmente, por questões políticas, de poder e de dominação.